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terça-feira, 23 de julho de 2019

O opressor que mora em mim





Opressão, em sentido originário, remete a sujeição, violência, força. De modo geral, a opressão que sofremos vem de fora, do mundo exterior: do patrão, do senhor, da classe dominante, da família, da escola. Há, entretanto, uma opressão que reside dentro de nós e é em nome dela que ficamos presos, em nossos relacionamentos, ao jogo de oprimir antes de ser oprimido. Conforme Paulo Freire, é precisamente o opressor que reside em nós que precisa ser combatido e isso se faz por meio de uma educação libertária, isto é, uma educação que não reproduza a lógica opressor-oprimido; uma educação desse tipo não exige submissão nem obediência, mas liberta.


A opressão que nos pertence é a causa dos conflitos entre adultos e criança e também daqueles que pertencem ao âmbito da relações interpessoais e das relações que fazem parte da esfera do sistêmico, ou seja, os conflitos dos grupos, das comunidades, enfim, aqueles da coletividade. E qual a origem da opressão que mora em nós e que gera o conflito? A educação. Isso, no entanto, não é apenas uma constatação de Paulo Freire senão também de Maria Montessori. É porque, primeiro, os pais e, depois, a escola educam de maneira opressora que a criança aprende a opressão; ela se torna opressora e reproduzirá esse comportamento do lado de fora, no mundo exterior, nas relações que estabelece como ser-no-mundo. Em outras palavras, se educamos a criança baseados na opressão, quando adulto ela será vítima deste mesmo comportamento errôneo que vem se transmitido de geração em geração.


Em um livro chamado Il bambino in famiglia, Montessori afiram o seguinte: nunca um escravo foi propriedade de um patrão como a criança é do adulto. Nunca houve um servo cuja obediência fosse uma coisa indiscutível e perpétua como aquela da criança ao adulto. Nunca as leis esqueceram os direitos do homem como esquecem os da criança. Nunca houve um trabalhador que deveria trabalhar assim como queria o patrão, sem apelo possível, como a criança. O trabalhador também tem horas de liberdade e um refúgio familiar, onde a sua voz humana ecoa em algum coração. Nunca ninguém trabalhou como a criança, sempre submissa ao adulto que lhe impõe [...] (Pág. 11-12, tradução livre). Aqui está, portanto, a origem da opressão em nós. Ela nasce quando desde os primeiros anos de vida os pais-educadores exercem a autoridade sobre a criança e exigem dela total obediência, quando impõe a vontade deles e não dão nem voz nem ouvidos a criança. Quando se colocam, por ser adultos, como superiores e exigem total submissão, e, finalmente, quando impõem o seu ambiente e exigem que a criança se adapte a ele, quando não permitem ou sufocam a ação livre e espontânea da criança, quando lhe impedem de fazer alguma coisa útil, isto é, de ocupar-se das coisas do mundo e não apenas com seus brinquedos.


A opressão que desde cedo sofremos e, portanto, que desde cedo aprendemos acontece, é verdade, revestida de amor, mas não deixa de ser o que é: uma violência que, por sua vez, reproduzimos, quando adultos, na nossa relação com os outros, relação que é conflituosa justamente porque se baseiam na lógica do opressor-oprimido ou submisso-insubmisso. Quando livramos a criança da opressão criamos a oportunidade da criança aprender sobre a paz e, quando adulto, ter relacionamentos pacíficos ao invés de conflituosos. Segundo Montessori, se a origem do conflito está na opressão também é aqui que encontramos a origem da paz, então, quando educamos a criança sem opressão, educamos para a paz.

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Ser mãe e o servir


                                          Desenho de Juliana Ali


Em O Segundo sexo Simone de Beauvoir afirma que “a fêmea é presa da espécie” e que a fêmea abdica em prol da espécie da sua individualidade (p.41 e 43). Isso contém a ideia de que a mulher, por natureza, é um ser que está a serviço da espécie já que é parte do feminino a possibilidade de tornar-se mãe. Com o nascimento da mãe, a mulher torna-se presa da espécie porque já não pode não estar à disposição ou a serviço da prole: nutre, ocupa-se dela com iniciativa, protege, e, quando necessário, luta para defendê-la contra qualquer ameaça, e, em função disso esquece de si, ela abdica da sua individualidade. Assim sendo, a servidão própria da maternidade tem, a primeira vista, um sentido negativo e, ao que me parece, é isso o que perpassa as reflexões de Beauvoir.




Quando a mulher decide ser mãe e renuncia a si, a sua individualidade, ela se torna uma escrava do outro, do ser gerado, visto que deixa de fazer por si para fazer tudo pelo outro. É uma anulação da própria vontade, é um abrir mão de si, dos seus interesses, enfim, do próprio ser da mulher para estar à disposição do outro. No servir, o outro é o mais importante. E penso que é aqui que reside um dos maiores conflitos da maternidade contemporânea: a mãe evita abandonar a si mesma, evita assumir plenamente o cuidado da prole e a sua educação (ao menos nos primeiros anos de vida) para não se resumir a ser mãe. É em nome das necessidades de ordem econômicas, profissionais, psicológicas, sociais, físicas que a mulher contemporânea, em geral, não serve a espécie; não se dispõe a estar a serviço da prole. Se caso faz, compreende isso como sendo um sacrifício pelo filho esquecendo, no entanto, do verdadeiro significado do sacro-ofício.




O colocar-se a serviço da espécie quando é compreendido conforme o verdadeiro significado de sacrifício possui um sentido elevado. Originariamente sacrifício significa tornar sagrado o ofício, o fazer, ou seja, é ressignificar alguma coisa e, no caso da maternidade, o servir à um filho. Quando vivemos o estar a serviço do outro como sendo sagrado, a anulação da própria vontade ou o abandono de si que a servidão exige é vivido como uma oportunidade de desconstrução do próprio eu, do nosso ego que exige o tempo todo que nos coloquemos em primeiro plano. O estar inteiramente a disposição do filho torna-se, assim, um ato de doação. Ao doar-se podemos exercitar o amor em sentido elevado, isto é, que é esquecimento de si, que não pede nem espera, que não reclama. Tal amor é o amor crístico (de Cristo) de que tanto se fala mas que tão pouco colocamos em prática.


Beauvoir, Simone de. O Segundo sexo. RJ: Nova fronteira, 1980