Páginas

domingo, 20 de outubro de 2019

AMAmentAÇÃO



Como mãe que amamenta estou a serviço da espécie (como diria Simone de Beauvoir), mas com amor isso não é uma escravidão. Servir ao outro é maior do que servir a si mesmo, é doação. Há uma fusão que naturalmente existe entre mãe e filha e que é nutrida na doação, pelo amor. Não é só o leite do peito o alimento senão também o amor que nos conecta, que nutre o corpo e o espírito, que nos une. No nosso amor há unidade e é por isso que amamentar é sentir-se um com o outro.
A ação de amamentar no sentido de servir - quando ela é livre (demanda) - nos exige estar à disposição do outro o tempo todo, de dia e de noite. A criança procura o peito quando tem fome, mas também quando precisa de atenção, de carinho, de proteção. Para além de alimentar, o peito é aconchego, é acolhimento, é remédio. Quando está frustrada ou entediada diante em uma situação a criança procura o peito. Quando se irrita, busca o peito. Quando quer colo, pede peito. Quando se machuca, o alívio vem do peito ...
Contudo, AMAmentar dói, dói no início e no fim, principalmente quando dura o tempo da nossa fusão, isto é, mais ou menos dois anos. Depois de dois anos já não temos um peito abundante, já não temos a mesma disposição e prazer em estar aí servindo o tempo todo. Ás vezes até sentimos certa irritação porque já não queremos mais ainda que a criança continue querendo, vivenciamos um conflito interno e externo. Certamente, a indisposição e o desprazer é um sinal da natureza de que já basta, já é o suficiente. É, portanto, o desmame da mãe que primeiro precisa acontecer para daí a criança de maneira natural desinteressar-se e encontrar outras fontes de prazer e compensação além do peito. Tal desmame tem a ver com um desprendimento da imagem que criamos de nós mesmas como sendo insubstituíveis e sustentadoras da vida; tem a ver com um reinventar-se como mulher, agora, sendo mãe.
Quando a fusão emocional já não mais existe, quando a mãe consegue se ver como sendo algo a mais do que somente aquela que serve à vida, daí sim, a criança naturalmente percebe a si mesma como distinta da mãe, compreende que o peito, na verdade, não é dela, mas da mãe. Compreende que não é só o peito que alimenta e sacia, que se quer colo e carinho basta pedir; compreende que um beijo cura e alivia a dor, que um abraço ameniza a frustração e a irritação; sente que o amor não se limita a união criada no peito, mas está além dele, transcende-o. E, é assim que, por aqui, acontece o desmame natural e gradativo, de modo gentil e amoroso.

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

A dança dos Dervixes




Dervixes é o nome dado a ordem dos dançantes ou girantes e seu fundador é Rumi, o místico poeta persa. É do encontro entre Rumi e o seu mestre, o sol de Tabriz - dizem que foi o encontro entre dois oceanos – que nasce o que conhecemos como sufismo. O sufismo é a ordem dos dançantes (girantes) porque nele se utiliza a música, o ritmo e o giro como ferramentas para encontrar o êxtase místico, em outros termos, uma experiência de unidade. Em ordem, do ritmo lento ao mais veloz, circundando um centro, gira-se e gira-se ... girando encontra-se o estado fora do tempo, a presença. E na roda que gira por horas permanece no giro quem transcende o próprio girar, o dançar rodante, o círculo que é dado nas incontáveis voltas. Para chegar aqui, para transcender o círculo é preciso entregar-se ao rodar, à dança. A entrega envolve o abrir mão do controle (que é uma ilusão). Com a perda do controle há uma aceitação do (descontrole) que acontece e a dissipação dos papéis, isto é, do ego.


Penso que o tempo, o nosso tempo, compartilha da mesma circularidade ou ciclicidade da dança dos dervixes. Desconfio que o tempo é cíclico e não linear como nos ensinaram. Pense na história: há ascensão de direita e tempos de ascensão de esquerda; há corrupção combatida que retorna num outro momento (tempo); há golpes que vão e vem e mudam o cenário histórico (tempo) que acontece. Pense na própria história, na sua história de vida ... no samsara. Outra percepção de que o tempo é cíclico pode acontecer quando olhamos para a natureza: há nela ciclos que acontecem e eles são muitos! A vida e a morte é uma bela manifestação da ciclicidade do que tem vida, da ciclicidade do tempo. O tempo cíclico também é a essência do próprio mundo sensível, do nosso mundo, do mundo dual, em outras palavras, o mundo dos opostos. Onde há dualidade, opostos: bem e mal, bom e ruim, positivo e negativo, luz e trevas, prazer e dor ... há ciclicidade. O mundo físico é dual, portanto, nem um pouco linear.


Par além do pensamento e dessas palavras podemos vivenciar o tempo cíclico em nós: a mulher em seus ciclos lunares e, portanto mensais e o masculino em seus ciclos solares e, portanto, conforme as estações anuais. Experencio em meus ciclos lunares a rotação, o movimento de vai e vem dos pensamentos, das emoções, dos comportamentos. Há tempos de introspecção e de criação. Ora é tempo de interiorização, ora é tempo de exteriorização – de expressar a si mesma numa atividade do mundo. Ora é tempo de ação noutro agora de repouso. Os ciclos em mim acontecem no âmbito físico, no mental e das sutilezas. O tempo que sou é cíclico, o tempo do mundo onde vivo é cíclico, mas, é possível a transcendência da ciclicidade? Obviamente!
 Do mesmo modo que os dervixes girantes, podemos encontrar o estado de tranquilidade da alma de Sêneca, de serenidade do mestre Eckart, de equanimidade conforme o Vipassana, enfim, o estado de presença no ir além da ciclicidade ou por meio da transcendência dos ciclos. Assim como para os dervixes para chegar até aqui, isto é, para realizar a transcendência é preciso entrega, é preciso abrir mão do controle e compreender que para além da nossa vontade, há uma vontade maior. A entrega envolve uma abertura metafísica, o que quer dizer, um reconhecimento de que há uma ordem maior, uma inteligência superior conduzido os acontecimentos da vida. Isso, no entanto, é precedido de algo mais básico, que é a percepção e a tomada de consciência dos ciclos acontecendo. Com a percepção dos ciclos inicia-se o trabalho de superação, de colocar-se além, de transcende-los no seu ciclo no corpo, na mente, no sutil. O tempo cíclico é superado pelo presente. A presença é a transcendência na imanência!