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sexta-feira, 7 de julho de 2017

Uma carta para Surya




Há diferentes modos de se fazer a despedida da barriga. É possível reunir-se com pessoas queridas e beber um bom chá de camomila e bater uma papo sobre expectativas, inquietações, dificuldades e alegrias vividas durante a gestação. É possível que reunidas, mulheres coloquem em ação a criatividade e pintem a barriga da mãe que nascerá com o nascimento do filho. É possível realizar num círculo familiar de mulheres um chá de bênçãos que, nada mais é do que, uma celebração que acolhe, fortalece, dá apoio e carinho à gestante na reta final da sua gravidez. Para mim, a escrita sempre serviu como terapia e, por isso, para me despedir da barriga optei por escrever uma carta para ti, a filha que ainda não nasceu.

Hoje é o último dia dessa conexão íntima que mantemos desde que você passou a morar dentro de mim. Durante muito tempo permaneceu em silêncio o desejo de ser mãe, mas no caminho do despertar espiritual, no caminho do autoconhecimento, o que estava latente veio à tona. Não existia mais dúvidas, era preciso tornar-se mãe, o que foi sentido e vivenciado como um propósito de vida. É um aperfeiçoamento de si que deve ser vivenciado e experenciado doando-se ao outro, o que quer dizer, abrindo mão de si mesmo e, portanto, destruindo o ego. Toda a gestação foi vivenciada como sendo a prática dos exercícios espirituais: presença, aceitação, entrega, confiança e gratidão e, tudo isso, regado com muita alegria, dança, silêncio, lágrimas e amor.

A alegria e o amor são duas esferas que se expandiram desde o dia em que descobri que você existia dentro de mim. O primeiro a receber a notícia foi seu pai que com alegria e emoção me envolveu no calor do seu abraço e agradeceu. Apesar de você estar aí, pulsando dentro de mim demoramos um tempo para assimilar (incorporar) o fato de que, daquele agora em diante seriamos pai e mãe. Você nos tocou profunda e indescritivelmente quando, pela primeira vez, ouvimos a batida do teu coração. Por um instante, o mundo parou e rompendo o silêncio estava aí a manifestação do som primordial; em meu ventre sagrado pulsava a vibração da vida, acelerado como é todo o movimento que dá origem ao que é vivo. Você, vida pulsante, me permitiu ser a manifestação da energia criativa, a deusa-mãe.

 
Com a tua presença senti meu corpo como um templo em que dava forma ao seu corpo; meu corpo tornou-se o guardião do espírito que você é. Amorosa e pacientemente acompanhei o passar dos dias, sentia e percebia o crescimento da barriga que ficou lindamente cheia, como a lua. Ah!! Quantos elogios!! Quantos olhares despertados, quantos sorrisos e benção dedicados a ti. Você me escolheu para ser sua guardiã e me deixou linda! Você cresceu rodeada de alegria, amor, serenidade, paz e gratidão. Durante toda a sua gestação você me permitiu fazer tudo o que nos fazia bem: dançar, meditar, viajar, praticar yoga, fazer trilhas, tomar banho de mar e de cachoeira. Seu pai nunca deixou de estar presente, de participar e compartilhar desses momentos alegres, de amor e gratidão por você estar entre nós. Ele nos chamava de “minhas gurias”, ele cantou, conversou e brincou com você – a acopladinha.

Tudo foi tão perfeito, saudável e natural que, certamente, não poderíamos planejar de outra maneira o começo, como diz seu pai - da sua jornada solo no mundo fenomênico – senão através de um parto natural. A princípio desejava que seu nascimento acontecesse no calor e aconchego da nossa casa, mas isso logo se apresentou como inviável. Apesar de existir um grupo de apoio que viria até nossa casa era necessário o apoio médico, o que não obtive. Então, nos adaptando ao contexto e situação espaço-temporal do momento, planejamos sua vinda natural no ambiente hospitalar. Ali, apesar da impessoalidade e da frieza você ainda assim poderia vir em seu ritmo e tempo natural. Eu esperaria pelos teus sinais, permaneceria em casa o máximo de tempo possível antes de ir até o quarto do hospital. A princípio, receberia o apoio de uma doula, mas, mais tarde, optamos pelo acompanhamento de uma enfermeira obstetra já que assim seria possível ver-te chegar sem estar em uma sala cirúrgica e com liberdade para parir tal como uma mulher selvagem. Entre ondas de parto (contrações), ocitocina e entregue a ti meu corpo se expandiria para te dar passagem e para te ver chegar em meus braços. Queria te sentir deslizando para fora de mim; queria ter a oportunidade de transformar a dor em prazer, de superar o medo da vida e da morte; queria a oportunidade de, como você, renascer para a vida; queria te sentir em contato direto sobre meu corpo, queria te permitir estar conectada a mim até que o cordão que nos unia deixasse de pulsar, queria ver o nascimento da placenta - a árvore da vida da qual você recebeu conforto, aconchego, calor, proteção; queria oferecer-te alimento paciente e prazerosamente enquanto admirasse o milagre da vida e a beleza que, sem dúvida, tu terás ... Como vês, filha, o respeito pela vida e pelo fluir natural estava cheio de querer, apesar de saber que pertence ao parir muita entrega o que implica abdicar do controle.

A verdade é que nada do que planejamos, agora, é possível. Tu vens, mas ainda não manifesta teus sinais. O tempo esgotou-se. Completam-se 42 semanas de gestação e não é possível esperar que você chegue ao mundo em teu tempo e ritmo. Peço-te desculpas, mas me sinto desamparada e sozinha para lutar por isso. Ninguém a não ser eu mesma está disposto a esperar. Quem assiste ao desfecho do teu nascimento poderia me dizer que me falta aceitação das coisas tal como elas são, ainda poderia me acusar de estar colocando a tua vida em risco por insistir eu tudo aconteça segundo o meu querer. Teu pai está impaciente e ansioso, não suporta mais a espera, quer te ter nos braços e ver teu rosto. Não consegue compreender que o que profundamente desejo é te respeitar e respeitar o fluxo natural da vida. Sei que quando estiveres pronta, quando estiveres plenamente capaz de inspirar e exalar o prana – o sopro da vida – comunicarias tua mãe e teu nascimento aconteceria, mas não há mais tempo.

 Por último, gostaria de te dizer que, daqui a poucas horas, tu nascerás em segurança, mas artificialmente. Não te sentirei chegando ao mundo. Tudo acontecerá rápido, sem qualquer dor ou prazer. Quem primeiramente te tocará serão as mãos da impessoalidade, ainda que humanas. O ambiente estará frio e não poderás encontrar calor em meu corpo porque não permitirão nosso contato pele a pele, nossa conexão será rompida abruptamente e o que foi tua proteção não nasce, mas morre. Não poderei vê-la tampouco despedir-me da árvore da vida que te alimentou. Não poderei te alimentar imediatamente nem estarás próximo do meu coração para sentir a explosão do amor e da alegria que terei ao ouvir o teu choro e te ver ... É assim que tu nascerás no final da tarde de um lindo dia de outono e noite de lua nova. Te espero e recebo entre lágrimas e amor, alegria e desespero, mas com a certeza de que há uma razão para que tudo seja assim tal como é e, certamente, teremos a oportunidade de compreender o porquê juntas. Então, vem, attraversiamo!!
 
 

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