“Que a gente saiba florir onde a vida nos plantar”
Puerpério
é o tempo de desestruturação emocional, do choro que acontece sem porquê; é
tempo de permitir ao outro te servir, do encontro com a própria sombra, do
reconhecimento do eu no tu, de sair do útero do pai e da mãe; é o tempo de
conexão que acontece no contato constante entre o teu corpo como extensão do
meu, no teu ato de buscar em meu peito o alimento, aconchego e calor; é tempo de
ouvir a pequena e silenciosa que vem de dento, a intuição.
É
no calor do peito da mãe que há o som do coração, o cheiro, o movimento tão
familiar para quem, agora, está do lado de fora, um corpo pequeno num espaço
vasto. Para amamentar e conectar-se ao filho que nasceu a mãe puérpera precisa
se desapegar dos afazeres cotidianos. É o não fazer nada o que possibilita o
contato e a relação amorosa, o envolvimento íntimo da mãe e do filho. O
conhecimento entre um e outro depende do estar aí, na relação, inteira; depende
do entregar-se e da presença o que é possível mediante o distanciamento do
mundo material e da aproximação com o mundo sutil. Para imergir no mundo do
desconhecido é preciso repouso e silêncio, recolhimento e introspecção, além de
uma dose de solidão pois é sem o contato social que podemos nos livrar de
conselhos e opiniões desnecessárias, uma vez que, cada experiência é única e
intransferível.
Para
que isso seja possível é, no entanto, necessário que um outro zele e cuide da
mãe puérpera, é necessário que um outro à sirva. A mãe que nasce deve receber
assistência, apoio e sustentação, ter companhia e a sua disposição a ajuda de
outra mulher experiente que oferece seus serviços para livrá-la das obrigações
relacionadas ao mundo exterior e doméstico. Em nossa sociedade moderna e urbana
não existe mais a rede de apoio formada por uma comunidade de mulheres e, por
isso, é comum que o apoio seja exercido por um parente, geralmente, a mãe da
mãe ou mãe-avó. Ela se instala na casa da filha para oferecer apoio doméstico,
afetivo e orientação para a mãe que nasce, contudo, apesar da intenção ser boa
isso nem sempre é benéfico para a mulher puérpera. Um recém-nascido depende do
equilíbrio emocional da mãe já que, devido a fusão mãe-bebê, ele está em
contato direto com o mundo das emoções e sensações. Tal equilíbrio, no entanto,
pode ser profundamente abalado coma presença da mãe-avó. Ela presencia a
ruptura do complexo de édipo dada com o nascer da mãe e do pai (da família) e,
ao mesmo tempo, pode ser o reflexo da sombra da própria mãe e, além disso,
devido ao íntimo grau de parentesco dá conselhos, interfere na díade mãe-filho.
Na
travessia do meu puerpério previ possíveis dificuldades com convivência
prolongada com minha mãe, afinal, já faz muito tempo que não vivemos mais sob o
mesmo teto, no entanto, não vislumbrava o conflito interior que me esperava.
Frequentemente, as coisas não são aquilo que parecem e não foi diferente neste
caso. Apesar das diferenças, não existia um vínculo conflituoso com minha mãe,
parecia que existia uma harmonia ente nós, parecia que aceitava-a completamente
no seu jeito de ser, o que, na verdade, não ficou confirmado a partir do
nascimento da Surya. Sim, existia uma ilusão entre nós, a ilusão de que tudo
estava bem, de que não existia conflito apesar das diferenças contrastantes
assim como havia uma ilusão na imagem da maternidade perfeita: de que bebê não
hora, não resmunga, de que não existe dilemas, de que só existe amor e não
raiva. Não foi preciso mais do que dois meses de convivência para que as
ilusões se desfizessem como fumaça. Interiormente permaneci caótica não só
porque não vivenciava uma maternidade perfeita, mas, principalmente, porque
minha mãe estava aí diante de mim com um comportamento irritante e, ao mesmo
tempo, refletindo comportamentos e aspectos de si que eu mesma reproduzo e
carrego em mim e que eram negados ou que viviam na sombra.
Sim,
“todas as pessoas tem nós centrais em sua vida, histórias não resolvidas,
abandonos afetivos, enganos, necessidades especiais, lugares estabelecidos na
família” (p.78), e, ao desatar os nós nos tornamos cientes da sombra, podemos
reconhecer um abandono afetivo, podemos ver que o outro reflete um aspecto do
próprio si mesmo que já não se pode mais negar. Quando percebi que nem tudo são
flores, quando não aceitava tudo tal como é, inclusive, a mim mesma como sou,
então, fiquei cheia de dor, desamor e raiva que, no meu caso, não expressava
tanto em palavras (porque quando acontecia sentia a obrigação de, enquanto
filha, desculpar-me diante da mãe) mas muito mais em lágrimas, na maioria das
vezes, contidas ... Além do incomodo de desatar os nós ainda me sentia incomodada
com os palpites e interferência da mãe-avó sobre uma coisa tão íntima e
individual como é o início da relação mãe-filho. O que uma mãe puérpera
necessita é apenas ser cuidada como uma semente frágil que se transformará em
flor. “Uma flor bela e altiva que conhece as leis da natureza e, acima de tudo,
as emoções femininas” (p.89). O que ela não quer é uma mãe-avó que defenda
ideias preconcebidas e dá conselhos, que, por suposta experiência, retira o
filho dos braços da mãe e a deixa sozinha quando o filho chora e mãe não
consegue acalmá-lo, quando a mãe tem a sensação de que não é capaz de dar conta
do filho, quando a mãe apenas tem vontade de chorar. O que ela não quer é uma
mãe-avó que exige justificativas diante da vontade de chorar e chorar e, assim,
faz a mãe fingir estar tudo bem, o que a mãe puérpera não quer é ter necessidade
de se defender e reivindicar o seu direito de ser mãe. O que se deve oferecer é
o cuidado que esteja a serviço da mãe e não do filho recém-nascido.
O
fato é que quando encaramos o que vivenciamos como uma jornada espiritual, toda
e qualquer dificuldade torna-se possibilidades de crescimento. As dificuldades
emocionais e de convivência do puerpério fizeram com que eu assumisse
conscientemente a raiva que sentia em relação a quem me gerou e ao serzinho
gerado. Elas possibilitaram o exercício da aceitação, principalmente, da
auto-aceitação, me fizeram olhar as próprias partes escuras ou ocultas e
temidas do eu que ainda sou, mas, confesso, é preciso coragem e força porque
nossa primeira reação é fugir, negar e não aceitar o lado escuro que somos e
que é iluminado pelo outro. Além das dificuldades tornarem possível o exercício
da atenção em relação a raiva que chegava como uma tempestade que anseia
devastar tudo ao redor, elas permitiram desenvolver a atenção para não adotar o
padrão de comportamento da vítima, o que é muito consolador e que com
facilidade nos entregamos; elas me fizeram lembrar que tudo passa e que onde há
sofrimento, de alguma maneira, existe o ego. Foi de dentro das dificuldades que
percebi que o nascimento da mãe e do pai exige um rompimento físico, emocional
e espiritual com o próprio passado: é preciso deixar de ser parte da mãe ou do
pai para nos tornar nós mesmos pai e mãe.
Quando
nasce uma mãe muitas serão as vozes que virão de fora, em forma de conselhos, certamente,
com a melhor das intenções, mas ninguém mais deverá guiar-nos senão ela, a voz
interior - a intuição. Quando uma mulher se torna puérpera as emoções entraram
em festa em seu interior, mas, o melhor mesmo é tornar-se consciente dos sentimentos
que vem e vão como a raiva, por exemplo. Quando temos a percepção da raiva, do
mesmo modo quando temos a percepção das artimanhas do ego que nos leva ao
sofrimento, então, também nos tornamos, naquele instante, livres deles.
Enquanto a mãe puérpera necessitar do cuidado de outrem, é necessária por em
prática a aceitação do outro, do mundo e do que ela mesma é porque é assim que
floresce o amor. Quando não negamos a sombra que somos e, sobretudo, vamos além
do que o outro que nos espelha é, assim, melhoramos a nós mesmos e toda uma
geração que está atrás como fundamento daquilo que reproduzimos em nosso
comportamento. Enfim, quando observarmos tudo isso, com certeza, florescemos
onde a vida nos plantou.
As citações são referentes ao livro "A maternidade e o encontro com a própria sombra" de Laura Gutman
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