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quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Amor Líquido ou Sólido? (Reflexões filosóficas sobre o amor)

    Zygmunt Bauman, um dos grandes sociólogo do nosso tempo, descreve sobre a flexibilidade e a fragilidade das relações afetivas em um livro chamado Amor Líquido. Aqui ele caracteriza o que é o amor líquido vivido nos tempos de hoje, sinaliza o que impede e o que constrói um amor sólido. Entretanto, para compreender sobre o amor não basta ler Bauman, porque, na verdade, não posso aprender o amor, é preciso a experiência. 




       Pouco se fala sobre o amor líquido, mas se vive. Fala-se muito mais em amor livre, diz-se até que amor livre é um pleonasmo já que se tratando de amor, por si só, ele já é livre. Sim é livre enquanto aquilo que sinto e dou ao outro, mas quando se trata de uma relação de amor entre parceiros sexuais a liberdade pode ser libertinagem e uma das faces do amor líquido. Neste caso, o amor pode ser tão livre que não apenas lhe falta limites, prefiro dizer, contornos mas também dispensa a responsabilidade afetiva. Sinto que, dar um contorno ao amor que doo ao outro de forma livre e espontânea, gera segurança. A questão é: quem põe o limite? Se vier de fora, do outro que é o parceiro da relação amorosa, pode parecer ou e até ser uma forma de controle. O limite, então, precisa vir de dentro. Eu, o sujeito que dá o amor, é quem dá o limite. Ele sabe e diz até onde o outro pode ir. Isso tem a ver com os seus valores e com o quanto aprecia de si mesmo, o quanto está disposto a se ferir ou até aceitar um certa violência sutil, em nome do amor livre. Os limites na relação amorosa são, na verdade, vitais porque permitem ao outro saber quem você é. Em última instância, colocar limites é um ato de amor a si mesmo. 
        Quando existem os contornos na relação amorosa entre parceiros sexuais há segurança. A segurança, por sua vez, é a base do amor sólido, que pode acontecer tanto numa relação monogâmica quanto numa relação não monogâmica ou aberta. Sem segurança existe pouca entrega. Entregar-se ao outro nos torna vulneráveis e só se faz isso quando a gente se sente seguro. É a segurança no relacionamento amoroso entre parceiros sexuais que garante a qualidade da entrega. Se a segurança é a sustentação do amor sólido, a insegurança, por sua vez, é o que fundamenta o amor líquido. 
        O amor quando é líquido evita os contornos da liberdade. Não há necessidade de explicar ou justificar nada. Por não ser necessário dar muitas explicações sobre os comportamentos, quereres e sentires, cria-se silêncios. O amor líquido é cheio de pequenos silêncios, que dizem tudo e ao mesmo tempo nada. Por esse motivo, no amor líquido há um fracasso na comunicação. É possível se relacionar com quem a gente não conversa? Ou conversa muito pouco, mais para contar sobre coisas alheias e quando se trata de si, da relação, silêncio... Enganosamente, pode-se considerar o silêncio uma maneira madura de lidar com a situação, mas silenciar te permite fugir de muita coisa, te faz criar e alimentar versões próprias sobre os fatos. Cria-se assim insegurança, angústia, ansiedade, solidão. Nesses termos, quando o amor termina nem é preciso uma conversa final tampouco dar explicações, basta deixar de seguir nas redes sociais e bloquear o número no celular. 
        A insegurança gerada pelo amor é como areia movediça, nela não se consegue construir nada. Aqui se tem tudo e, ao mesmo tempo, nada. Na insegurança, o amor é fluido. Em função disso, não se sabe se está ou não com quem partilho a cama, nada se sabe sobre estar ainda juntos amanhã. No amor cuja base é a insegurança não se alimenta a esperança de querer dar certo, antes o contrário, alimenta-se o pensamento que a qualquer momento o amor da relação com o parceiro pode acabar. Nesse tipo de relação líquida, por um lado, me desmotivo por não saber se estou ou não com o outro e, por outro lado, com o fato de ter de constantemente agradar o outro para que ele continue querendo estar comigo. É uma preocupação do amor líquido querer agradar constantemente o outro que, em tempos virtuais, gosta da novidade. 
        Tal como na tela, na vida real também passa-se a amar tão somente a novidade. Quando se é movido pelo anseio do novo sem hesitar troca-se qualidade por quantidade, ainda que, assim, não se preencha o vazio ou o deserto existencial que vive dentro. Bauman sinaliza que no amor que quer novidade a todo momento o desejo vai perdendo espaço pelo impulso. Pelo impulso do querer, salto com facilidade e rapidez de afeto em afeto, aumento a rede de contatos, aumento a velocidade, acelero e a relação amorosa sexual se torna rasa. O amor líquido, por ser permeado de impulso, facilidade e aceleração é inseguro. E, quem convive com a insegura sempre espera pelo fim. 
        Quando a mentalidade de que a relação amorosa pode acabar a qualquer momento se sobrepõe, quase desparece a esperança de querer fazer dar certo. Afinal, se amanhã com facilidade e sem muitas razões tudo pode acabar não há porque esperar, fazer qualquer investimento ou sacrificar a própria vontade diante do outro, o parceiro amoroso sexual. Na relação líquida o “eu quero” e o “eu posso” torna-se uma necessidade. Pensa-se: tenho direito de viver as minhas experiências doa a quem doer. E o outro que divide a cama comigo precisa entender e aceitar isso. Não raro, um relacionamento desse tipo está fundado e uma furiosa individuação. 
        A máxima individuação funciona assim: apareceu a oportunidade, por que não aproveitar? Sento impulso, porque não me experenciar. Sim a escolha que faço pode machucar o outro mas o que importa sou eu, importa o que eu quero nesse momento, importa o que acho que é importante pra mim viver e doa a quem doer. É visível, no amor líquido há um egoísmo extremo, uma furiosa individuação. Não existe neste tipo de amor o sacrifício entendido como sendo o abrir mão de algo por amor ao outro ou para evitar causar danos ao outro. É egoísta porque não há a preocupação de abrir mão de si, do seu querer, da experiência que se tem a possibilidade de vivenciar. Na relação amorosa líquida cada um é um e livre para viver as experiências que quer viver sem olhar outrem e além. 




        Contudo, assim como Rupi Kaur nos mostra que há “outros jeitos de usar a boca”, e, do mesmo modo, há outros jeitos de amar. Não é porque vivemos na modernidade líquida que a relação afetiva amorosa precisa ser líquida. Uma relação amorosa sexual não precisa ser líquida porque pode ser sólida. E, quando se trata de amor sólido, Bauman nos diz o seguinte: esse amor se constrói com tempo, investimento, sacrifício (esforço) e comunicação. Para evitar mal entendidos aqui, é preciso deixar claro que investimento, não implica em um sustentar o outro. Está relacionado com tempo de qualidade e apreciação da vida juntos e isso envolve a energia do dinheiro. Do mesmo modo sacrifício não tem aqui a conotação religiosa, isto é, não deve ser entendido dentro de uma perspectiva da religião católica e sim no seu sentido originário. Sacrificium, do latim, que significa renuncia voluntária (a algo, alguém importante ou a si próprio). Isso tem o sentido de ofício sagrado, ou seja, é uma ação sagrada o esforço de abrir mão de si, da sua vontade. Parece-me que esse ato sagrado é o que garante uma relação seja amorosa ou não. Se não há um abrir mão de si em toda e qualquer relação não existe apenas um conjunto de eus desconectados?
          Para finalizar quero ampliar ainda mais a compreensão moderna do amor com a constatação de que o amor sólido não exige um relacionamento monogâmico. Pode ser construído também em um relacionamento não monogâmico, desde que lhe seja dada a base para crescer que é a segurança. O mais difícil, contudo, é compreender que para se ter um amor sólido é preciso criar segurança mas sem garantia, é preciso sacrificar vontades mas sem garantia, é preciso a esperança do querer fazer dar certo, mas sem garantias. E a vida, afinal, no fundo também é isso: viver sem garantia!

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