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segunda-feira, 26 de março de 2018

O círculo de Mabon





Surya é filha do outono. Há um ano atrás estávamos em círculo mas ela não conhecia o outono nem eu o percebia. Agora, um ano depois, outra vez, estamos em um círculo sagrado feminino e celebrando o outono. Outono é o tempo em que caí na terra aquilo que não serve mais, aquilo de que não mais se precisa. É tempo de recolhimento, mas também de leveza porque quando deixamos para trás aquilo que não mais nos pertence, tornamo-nos leves para recomeçar. Todo recomeço contém em si um renascimento. Cada uma de nós que esteve ali, no círculo, sabia intuitivamente o que é o outono fora e dentro de si. O outono que celebramos em roda, é, segundo a cultura celta, uma celebração de agradecimento pela colheita do que foi plantado, uma celebração em que se honra os ancestrais e o espírito (vida) da terra. Esse festival é conhecido como Mabon.

Foto de Andressa Rotondaro

Nós, mulheres, re(unidas), ali, naquele círculo honramos nossos antepassados reconhecendo que somos o que somos porque eles foram o que foram, reconhecemos a importância da vida que gera vida. Honramos fazendo reverencia e agradecendo, honramos quando decidimos tomar o rumo de nossa vida em nossas mãos nos desidentificando da linhagem que nos antecedeu. Quando reconhecemos, agradecemos e nos despedimos daqueles que nos precederam também nos libertamos de cargas pesadas. Elas deixam de nos pertencer e, assim, ao nos tornar livres também nos tornamos mais leves.

Foto Andressa Rotondaro

Com a leveza das folhas que caem fomos convidadas, no círculo, a nos tornar sementes. Como sementes, em posição fetal, era possível sentir em nós a força e potência da vida. Enquanto sementes caímos de uma vigorosa árvore diretamente na terra, sentimos o calor do ventre e, ao som do tambor, sentimos em nós a vida pulsar forte, firme, preparando-se para renascer. Em círculo, em um noite estrelada de lua nova, cantamos, primeiro em desarmonia, depois em uníssono “água da vida, purifica-me. Fogo do amor, libera o meu temor. Vento da alma, me leve a voar. Mãe terra, volto ao meu lugar “. As vozes ecoaram noite à dentro, coração à dentro e, então, silêncio. OM!


quarta-feira, 21 de março de 2018

As palavras e as coisas


Foucault escreveu um livro chamado “As palavras e as coisas” onde procurou explicar as transformações históricas da linguagem. Em síntese, esse livro apresenta a ideia de que até a modernidade as palavras funcionavam como uma ponte de ligação entre o eu e o mundo. A relação entre o existente e o mundo, ou ainda, o acesso ao mundo pelo sujeito é dado pela linguagem. A partir da modernidade, a linguagem deixa de ser o que se refere ou conecta ao mundo e passa a ser compreendida como o próprio mundo. As palavras são o mundo e, portanto, sem elas não existe mundo para o eu cognoscente. A linguagem torna-se, assim, o ser das coisas.




Para além de Foucault, percebo a relação entre as palavras e as coisas na realidade, na construção da linguagem da criança que brinca ao lado. Primeiro a letra, depois a sílaba e, por fim, a palavra. Mas, como acontece a relação entre as palavras e as coisas do mundo? Sem dúvida, por meio de um intermediário. Em torno dos nove meses a criança começa a reconhecer a bola como bola porque um mediador apresenta o objeto, ao qual ela se refere ao pronunciar “bo”, e o nomeia como “bola”. Outro exemplo, quando a criança pronuncia “papa” e um mediador apresenta a comida. É, então, dessa maneira que se dá a construção do significado entre a coisa e a palavra. Há um salto que ocorre quando o falado torna-se escrito. Quando as palavras ganham forma, ou ainda, quando o som adquire um forma (gráfica/geométrica).

sexta-feira, 9 de março de 2018

A maternidade é agridoce




Na maternidade nem tudo são flores. Em nossos primeiros seis meses juntas percebo que há em mim um presença insistente e cíclica de um estado de ânimo: a brabeza ou raiva ou irritação. É claro que sei que não é uma boa deixar a raiva sobreviver entre nós. Não é sábio permitir que esse padrão de comportamento se reproduza entre nós porque isso, certamente, tornar-se-à um dos teus padrões de comportamento. Então, o que fazer? Enganar a si mesma fingindo ser a mãe perfeita, calma, tranquila, que não grita e que não sente, as vezes, vontade de fugir? Impossível. Não consigo enganar a mim mesma. É possível “segurar” e não dar vasão a tempestade interior? Sim, é possível calar e esconder a raiva que vez ou outra insiste em visitar-me já que, afinal, sou cíclica. Acontece que interiormente, sei que não é o melhor fazer isso que fiz durante boa parte desta vida porque tudo o que é represado uma hora ou outra acaba se manifestado com muito mais fúria. Assim, estou convencida de que o caminho a se seguir é o do conhecimento. Por meio do conhecimento, quiça, poderemos transformar raiva em sorrisos.
 Aprendi com os mestres que é preciso estar atento, presente, e, assim, tornamo-nos consciente das emoções que surgem e, no caso da raiva, ao ter ciencia dela, ao mesmo tempo, ela se dissipa. Contudo percebi que isso não me bastava, não era suficiente. Na maternidade aprendi que preciso ir além, isso quer dizer, mais do que estar consciente é preciso compreender os motivos e as causas da raiva. Nesse exercício a respeito de si compreendi que a brabeza pode ser um padrão de comportamento herdado do modelo feminino, isto é, da mãe. Ela é o nosso primeiro grande exemplo de “modus operandi” no mundo. Também compreendi que a raiva é uma emoção que se manifesta na infância, nas situações em que somos contrariados ou quando não somos ouvidos e, ainda, quando não conseguimos expressar o que pensamos e queremos dizer. Isso me faz perceber que quando a raiva existe em mim reproduzo a mãe, insatisfeita com as “coisas” do mundo que não acontecem segundo o próprio querer nem correspondem as suas expectativas; sou a manifestação da criança contrariada, agora, por outra criança que em seu ser é espontânea e imprevisível, que não necessariamente respeita uma rotina e planejamento e que nem sempre atende as minhas vontades.
Com a maternidade temos a oportunidade de lidar com nossas emoções e, por isso, há dias de céu cinza e de secura no jardim. As vezes ela pode parecer um pântano, contudo, é do pântano que nasce a flor de lótus; é da compreensão e acolhimento das nossas emoções que podemos dar um salto espiritual.